Nesse artigo, falamos sobre identidade e pertencimento. Convidamos quem mora no exterior a olhar para si, (re)conhecer-se, (re)conectar-se com suas raízes para criar maneiras de viver mais feliz consigo e com outros em terras estrangeiras. Entenda como o autoconhecimento vai te ajudar a morar fora do Brasil.
São muitas as dúvidas e inseguranças de quem parte para um novo país: será que darei conta de me comunicar com o idioma do lugar? Será que vou me acostumar com a cultura e os hábitos tão diferentes do meu? Será que terei amigos? Vou suportar a saudade? E por aí vai.
Os inúmeros preparativos (vistos, aulas de idiomas, leituras sobre o país, busca das melhores regiões para morar...), ajudam a lidar com essas preocupações. Você mal pode esperar para viver novas experiências, conhecer outras culturas e lugares diferentes. Essa é uma oportunidade almejada por muitas pessoas e você é o alecrim dourado que está a caminho desse sonho!
Porém, após alguns meses, você percebe que há sempre algum incômodo, uma falta, um sentimento que você não sabe nomear. Não é saudade, não é rejeição, pois você tem amigos! Mas então, o que pode ser? É bom lembrar que a falta é inerente do ser humano, é ela que nos impulsiona ao encontro dos nossos desejos.
Como é ser imigrante: um peixe fora d' água?
Vamos começar nomeando aquilo que você passou a ser a partir do momento em que chegou no exterior. De acordo com dicionários, seu status no país pode ser imigrante- pessoa que imigra ou imigrou, estabelecendo-se em país diferente do seu. Ou seja, que fixou residência. Mas você pode ser denominado também de estrangeiro- aquele que é natural de outro país. Que não faz parte de uma família, de um grupo, que desconhece suas leis e costumes. Sendo assim, o que faz uma pessoa ser estrangeira vai além da sua atual localização geográfica, e inclui também, o quanto a pessoa se sente alheia ao que está à sua volta.
Há na ideia de ser um estrangeiro uma relação de dentro e fora, bem como a concepção de não pertencimento. Já que esse sujeito não conhece as dinâmicas sociais- idioma, leis e costumes desse novo lugar. O tempo de permanência no local não está associado ao estrangeiro, dando-se a impressão de que o mesmo encontra-se em movimento, um ir e vir sem vínculo com o local; já o imigrante supõe um tempo de permanência, busca um espaço para fixar residência, mesmo que temporária. Para o sociólogo alemão, Simmel, ser estrangeiro está mais perto do distante, o estrangeiro sentido como o “estranho”, como um não “proprietário do solo”. O estrangeiro que ora está num lugar, ora em outro e a nada e ninguém pertence. E isso acaba estabelecendo um “não relacionamento”, um “não- membro” de uma comunidade.
“O estrangeiro”, de Albert Camus e um exemplo da dificuldade de morar fora.
Albert Camus conta com genialidade em seu livro “O estrangeiro”, a história de Mersault, francês habitante da Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, época em que o mundo é palco de absurdos e falta de humanidade. Onde mostrar quem você é, dar sua opinião e mostrar-se original, já não faz mais sentido. Dando-se lugar à apatia, um verdadeiro “tanto faz” o qual leva o personagem a ser julgado como alguém que age diferente da norma, não pertencente. Porém, não pelo fato de morar fora do seu país, mas pelo fato de ser um estrangeiro do seu próprio mundo.
Mersault é um estrangeiro não somente por estar fora da França, mas também por estar alheio e indiferente a tudo que acontece no mundo. Não há sensação de pertencimento senão a si mesmo. E essa condição de viver às margens, na indiferença, “não membro” do lugar o torna diferente e até temido por algumas pessoas.
Uma crise na identidade e no pertencimento
A obra pode nos levar a algumas interpretações filosóficas existenciais que não vem ao caso agora. O que nos interessa é jogar luz ao que podemos nos deparar ao migrarmos para terras estrangeiras. Comparando à história de Mersault, muitas pessoas que moram fora do seu país de origem por anos, sentem-se como ele. Uma falta de identificação com o lugar, uma sensação de não pertencimento que muitas vezes não são palpáveis, nem nomeáveis por quem sente. Tudo isso pode trazer angústia, solidão, levando a um sofrimento psicológico constante.
Bauman diz que vivemos uma crise de identidade e pertencimento. No mundo globalizado, à medida que estamos em vários lugares ao mesmo tempo, rompemos barreiras geográficas nos aproximamos das pessoas, revela-se um sentimento de não pertencer a lugar nenhum. A identidade fragmentada como subproduto das ambivalências da modernidade líquida, na qual as relações sociais são mais frágeis e voláteis.
A questão da identidade merece especial atenção, pois se relaciona diretamente à temática do pertencimento.
Mudança de identidade no processo de migração
A identidade representa quem somos e como os outros nos veem.
Um sujeito constrói sua identidade ao longo de sua história de vida somada aos marcadores sociais de gênero, classe e raça os quais carregam estereótipos bem demarcados na sociedade. É uma narrativa que se delineia conforme quem a escreve e quem a lê. Por estarmos sempre em constante mudança, não é um processo fixo. É, portanto, uma construção reflexiva e dialógica que limita quem somos e quem não somos, da mesma forma que quem e como gostaríamos de ser ou deveríamos ser. Alô redes sociais!
Percebemos nossa identidade quando nos sentimos confortáveis e acolhidos em um grupo social. Há um sentimento de que "aqui é o meu lugar, as pessoas me entendem, sentem o mesmo que eu, admiram, emocionam-se e desprezam o mesmo que eu."
O que o outro pensa de mim
Em uma mudança de país, a identidade atribuída pelos outros pode vir carregada de rótulos baseados na aparência imaginada ou presumida- traços culturais (cor da pele, idioma, vestimentas, religião) ou outras associações estereotipadas que falam muito sobre a cultura hegemônica local, e talvez não tanto sobre quem você é.
Essa percepção, coloca quem não é nativo em uma posição não privilegiada e alvo de preconceitos. Além disso, ela pode entrar em conflito com o autoconceito que você já tem sobre si e provocar uma crise de identidade. Você passa a não se reconhecer mais como antes, sente insegurança sobre quem é e pode até duvidar do seu valor.
Pertencer é uma necessidade humana
O sentimento de pertencimento em uma comunidade é fundamental para a identificação de um sujeito. Sentir-se pertencendo a uma comunidade significa se sentir seguro e em casa. E isso requer a combinação da familiaridade, identificação, vínculo emocional, reconhecimento e a sensação de segurança. A humanidade chegou até aqui porque as pessoas puderam contar umas com as outras. Evolutivamente falando, viver em grupo foi favorável a nossa sobrevivência enquanto espécie.
Estudos revelam que essa necessidade básica por pertencimento, por buscar relações sociais profundas e positivas é fundamental para uma vida saudável e satisfatória. Quando não satisfeita, pode acarretar consequências negativas, tanto psicológicas quanto fisiológicas. Sentir-se pertencente está relacionado com a incidência de humores positivos e a uma menor incidência de doenças. Principalmente em pessoas que têm um estilo de apego evitativo, as quais temem se relacionar por medo de abandono e pouco conseguem demonstrar suas emoções. Para tais pessoas, é muito importante manter a motivação para sustentar relações, pois déficits no sentimento de pertencimento foram identificados como prejudiciais às habilidades de socialização, levando à ansiedade e isolamento social.
As pessoas apresentam níveis de motivação diferentes pela procura de conexões sociais bem como o quanto valorizam a aceitação social por parte das pessoas. Há aquelas que são fortemente motivadas a manter relações de aceitação e pertencimento, por isso empregam maiores esforços para tal finalidade, enquanto outras não são tão motivadas a manter conexões sociais.
Há na literatura científica um instrumento para mensurar as diferenças individuais na necessidade de pertencimento, a Escala de Necessidade de Pertencimento (ENP), que visa medir a motivação individual pela procura de conexões sociais e o quanto o indivíduo valoriza ser aceito pelas outras pessoas.
Percebe-se que indivíduos com necessidade de pertencimento alta:
apresentam maior sensibilidade para detectar possibilidades de estabelecer relações sociais;
conseguem realizar avaliações mais acuradas das emoções dos outros e identificar situações de rejeição;
apresentam comportamentos mais socialmente desejáveis para a manutenção de boas relações e preservação de laços afetivos, como a cooperação.
Além da intensidade, existe diferença na qualidade da necessidade de pertencimento, denominadas de orientação de crescimento e orientação de redução de déficit. Abaixo, aproveite e veja na tabela em qual tipo você se encaixa mais:
Além disso, os tipos de orientações interferem na maneira como as pessoas são tratadas e percebidas pelos outros. Quando uma orientação de pertencimento é voltada para o crescimento, as pessoas demonstram afeto mais genuinamente, logo são vistas como mais simpáticas e, portanto, mais facilmente aceitas pelo grupo. Por outro lado, quem se mostra mais inseguro por temer a rejeição, por procurar uma relação para suprir um vazio, em uma orientação de redução de déficit, acaba demonstrando, por vezes, as mesmas condições que quer evitar, encontrando motivos para ser rejeitada . E assim, uma simpatia reduzida aos olhos dos outros, e consequentemente baixa aceitação social, o que perpetua o sentimento de vazio e solidão.
Ao ler sobre as orientações, muitas pessoas podem se identificar com os dois tipos, o que é bem possível, pois acredita-se que as duas orientações estão presentes em todas as pessoas em diferentes graus. Embora, qualquer uma das duas orientações possa ser desencadeada sob as condições apropriadas, existe a hipótese de que uma orientação é tipicamente mais predominante do que a outra para a maioria das pessoas.
De onde surge minha necessidade de pertencimento?
Autores de diversas abordagens como Winnicott da psicanálise, afirmam que as experiências sociais anteriores, principalmente experiências da primeira infância, influenciam nossa maneira de ser e agir. Jeffrey Young, autor da Terapia do Esquema, diz que a ausência de cuidados essenciais, experiências de abuso, vivências de relacionamentos instáveis na infância, são ingredientes perfeitos para um modelo desadaptativo de crenças, gerando vínculo de apego inseguro ao longo da vida.
Portanto, ao pensarmos em como a pessoa se orienta para criar laços sociais, propõe- se que, quando alguém experimentou relacionamentos sociais seguros e satisfatórios, deve ter desenvolvido uma representação cognitiva dos relacionamentos que é positiva. As experiências satisfatórias e positivas das relações hipoteticamente promovem o desenvolvimento de uma orientação de pertencimento de crescimento. Por já terem tido experiências satisfatórias de pertencimento em seus relacionamentos anteriores, elas podem entrar em novos contextos sociais e relacionamentos com a confiança de que sua necessidade de pertencimento será satisfeita novamente no futuro.
Por outro lado, quando as relações sociais que uma pessoa experimentou ao longo dos anos foram privadas de confiança, amor e respeito mútuo, a necessidade de pertencimento nunca foi totalmente satisfeita. Consequentemente, a busca pela satisfação do pertencimento e o medo de perder relacionamentos adquiridos estão sempre em andamento. Assim, experiências anteriores desse tipo levarão ao desenvolvimento de uma orientação de pertencimento para redução do déficit.
Item indispensável na sua mudança de país!
Dessa forma, é importante levar na sua bagagem de viagem boas doses de autoconhecimento!
Identificar pontos relevantes da sua identidade, procurar saber se no país destino você teria possibilidades de expressá-los de alguma maneira. Por exemplo, grupos culturais, cultos religiosos, ingredientes culinários que faziam parte do seu dia a dia no Brasil e que constituem a sua identidade.
"Lembro-me que no meu intercâmbio a Montréal, Canadá, foi extremamente reconfortante entrar em um grupo de dança africana, similar ao que eu fazia no Brasil. A sensação de pertencimento foi instantânea! Lá era o lugar onde eu me reconhecia como indivíduo e fiz os laços de amizade mais genuínos com pessoas locais", lembra Malu Rocha.
Não menos importante, é perceber o quanto você precisa se sentir pertencente e os motivos que te levam a isso. Para assim, promover mudanças de comportamento, estabelecer relações saudáveis e verdadeiras, e, por consequência, apaziguar os momentos de sofrimento. Com base nos estudos descritos, listamos alguns pontos para você fazer uma auto-reflexão antes de se lançar no mundo:
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Escrito por:
Beatriz Zanetti (CRP - 01/19319) - Psicóloga pela Universidade de Brasília e Mestre em Educação para Carreira pela Universidade Livre de Bruxelas. Dedica-se a auxiliar quem vive transições de vida e carreira, na busca por felicidade, presença e equilíbrio, no Brasil ou no exterior. Atendimentos em português e inglês
Maria Luiza Rocha - Graduanda em Psicologia pela Faculdade Cesusc, Bacharel e Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Interessada em pessoas, cultura e sociedade.
REFERÊNCIAS:
Gastal, C. A. & Pilati, R. Escala de Necessidade de Pertencimento. Psico-USF, Bragança Paulista, v. 21, n. 2, p. 285-292, mai./ago. 2016.
Lavigne, G. L., Vallerand, R. J., & Crevier-Braud, L. (2011). The fundamental need to belong: On the distinction between growth and deficit-reduction orientations. Personality and social psychology bulletin, 37(9), 1185-1201.
Ramos, Thais Valim. Imigrante, estrangeiro, expatriado - entre o desejo da hospitalidade e o encontro com a hostilidade. Revista Conexão Letras, Porto Alegre, RS, v. 12, n. 18, jan. 2018.
Udah, H., & Singh, P. (2019). Identity, othering and belonging: Toward an understanding of difference and the experiences of African immigrants to Australia. Social Identities, 25(6), 843-859.
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